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quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

O Gaúcho jamais morre


O Gaúcho jamais morre”

ter, 08/02/11

por Lédio Carmona |
categoria 2011

Recebi de Alexandre Perin a indicação para ler um texto publicado no excelente blog Impedimento. Na emocionante série Los de Abajo, Iuri Müller e Maurício Brum contaram a saga do Sport Club Gaúcho. Lutando para sobreviver depois de ter fechado as portas e perdido seu estádio, o simpático time de Passo Fundo é um emblema do que vem acontecendo com clubes que apesar de pequenos, são tradicionais e guardam belas histórias de um futebol autêntico e feito com paixão. Um dos ídolos do Gaúcho foi o falecido centroavante Bebeto, nesta foto com a camisa do Caxias. Bebeto tinha lugar certo nos gols da rodada e está na memória de quem acompanhava futebol nos anos 70.
Certa vez estive em Passo Fundo para fazer um perfil de Felipão. Infelizmente Bebeto havia falecido há pouco, e não pude tomar seu depoimento. Mas fui ao estádio que aparece no post do @impedimento. Ao contrário de hoje, era realmente um estádio, e não esses escombros tomados pelo mato. Daqui, torço pela reação do Gaúcho. Debaixo do matagal que toma o campo do estádio Wolmar Salton, repousam histórias do bom e guerreiro futebol do sul do país. Força, Gaúcho. Que você, realmente, não morra jamais.


Los de Abajo – S.C. Gaúcho

08/02/2011
“Por que trouxe para a minha casa a sede do Gaúcho? Por que assumi a equipe na situação mais complicada da história? Por que abri mão da minha vida familiar, do sono e da tranquilidade? Tudo por causa daquele chute do Bebeto. O Wolmar Salton estava lotado, a partida era contra o Grêmio, que até ali ganhava. Até que o Serginho escapou pela direita e cruzou para a meia-lua, onde estava o Bebeto. Ele pegou de canhota e empatou o jogo. O estádio inteiro fez um instante de silêncio. Nunca vou esquecer do som da bola batendo na rede. É por essa lembrança que eu faço de tudo pelo Gaúcho.”
O diabo não nos deixou nem o pão
Quando Gilmar Rosso entrou na sala do presidente da Federação Gaúcha de Futebol, Francisco Novelletto, para recolocar o Sport Club Gaúcho de Passo Fundo na lista de participantes da Segundona de 2010, não imaginava que seria recebido com tamanha indiferença. Trazia consigo uma penca de questionamentos e uma pretensão. Mas o Novelletto das agendas lotadas não tinha tempo para as dúvidas do presidente do Gaúcho. Limitava-se a recusar a inscrição do clube passo-fundense: sem um campo próprio para atuar desde 2007, o time não apresentava qualquer garantia para a FGF de que se manteria até o final do certame.
“Estou tentando não deixar morrer noventa e um anos de história. Se você não quiser me ajudar, paciência, mas eu vou até pela via judicial para botar o Gaúcho em campo”. Novelletto respondeu prontamente, com um prazo curto: “o Gaúcho tem uma semana para arranjar um estádio”. Aproveitando o encontro, Rosso tentou discutir sobre o futuro do interior – mas compromissos mais importantes aguardavam o mandatário do futebol gaúcho. Sem dar conversa, o presidente da Federação se dirigiu à saída da sala e apenas frisou o que dissera anteriormente: “vocês têm uma semana para conseguir um estádio para jogar”.
Como se fugisse de um grande desastre em direção às montanhas, o Gaúcho montou a sua barraca de lona preta no Estádio Municipal de Marau, a quarenta quilômetros de Passo Fundo. Foi um recomeço integral: longe de uma casa que não era mais sua, o Gaúcho não cobrava ingresso, embora uma caixinha de doações passasse pelas mãos dos torcedores dispostos a colaborar com o clube. No mesmo molde de solidariedade, o médico e o preparador físico chegaram a se plantar atrás do gol e atuar como gandulas. “Por mais difícil que tenha sido, me emocionei com aquela cena. Era um médico renomado e um professor universitário de coletes, repondo a bola para o goleiro do Gaúcho”.
A ida para Marau tem uma causa antiga. Há quinze anos, um acidente nas piscinas do Wolmar Salton deixou um garoto tetraplégico e dependente de um caro tratamento. O clube deveria pagar uma pensão ao menino e, de acordo com o advogado da família, não teria cumprido com os valores determinados. Em 2007, poucos meses depois do rebaixamento do Gaúcho para a Segundona, o patrimônio físico do time foi à leilão e acabou arrematado pelo próprio advogado, em nome da família do garoto. Na época, pretendia-se negociar com uma rede de supermercados a venda de toda a área. A ação que impediu o provável fim do estádio foi o tombamento do Wolmar Salton, feito pela prefeitura de forma providencial.
Desde então, o caso tramita na justiça sem que haja acordo entre o clube e o advogado. O próprio Gilmar Rosso, que também é empresário e professor universitário, tentou negociar o aluguel do estádio para as partidas do Gaúcho na Segundona. Em contrapartida, zelaria pela conservação da área, proposta que foi negada pelos atuais detentores do terreno. Hoje o Wolmar Salton é uma floresta com duas goleiras fincadas. Não fossem as metas, nada indicaria que aquele pedaço foi, um dia, um campo de futebol profissional. Com exceção das cadeiras do pavilhão social, tudo foi roubado por vândalos – e o local passou a ser usado como abrigo por sem-tetos e visitado por dependentes químicos. Os estragos resultaram em um estádio com todas as aberturas lacradas e inteiramente entregue às intempéries do destino.
A desolação da velha cancha do bairro Boqueirão faz com que o espírito de um antigo ponteiro-direito se encha de tristeza quando recorda os dias vividos lá dentro. Meca, de 72 anos, preenche algumas das fotos mais famosas da história do Gaúcho. Numa do fim dos anos sessenta, quando o Gaúcho já se fazia presente na primeira divisão, Meca é o segundo agachado, embaixo dos irmãos João e Daison Pontes. O ex-ponteiro, hoje transformado em fixo no futebol de salão dos fins de semana, guarda em sua casa um material que conta uma parte valiosa do futebol da cidade. Desde seu início pelo extinto 14 de Julho, ao acesso com o Gaúcho e as temporadas na elite, há registros fotográficos e uma enorme lista com todas as partidas disputadas pelo jogador.
Américo de Oliveira é amigo pessoal de Daison Pontes, com quem fazia tradicional dupla no carteado. “‘Eu só jogo se for com o Meca. O Daison brigava mesmo com todo mundo, menos comigo”, contou, imitando a voz rouca do histórico zagueiro. E para Américo, não havia nada de absurdo na virilidade que deu fama a Daison por todo o estado: “ele jogava atrás, queriam o quê?”. Naquele mesmo retrato, ao lado direito de Meca, aparece o já falecido Bebeto, o Canhão da Serra, lembrado por ele com saudade: “ele chutava tudo, até toco. Tanto que às vezes aparecia com o pé machucado para treinar”. Hoje viúvo e morando sozinho nos fundos da casa de uma das filhas, Meca não acompanha mais o futebol local. Das coisas do seu tempo, porém, tem inúmeras fontes para consultar o que a memória levou para sempre.
Se naqueles anos sessenta se dizia que sobreviver ao Wolmar Salton era necessário para formar o campeão gaúcho, na atualidade faltam um campo e uma equipe a temer. Com oficiais de justiça batendo à porta com cobranças, o presidente Gilmar Rosso fez de um escritório em sua casa a sede transitória do Gaúcho que, em 2011, vai atuar no Vermelhão da Serra, do seu rival-moderno Passo Fundo. Na apressada reunião da FGF que definiu o novo regulamento da Segundona em trinta minutos, a única voz a propor alguma alteração foi a de Rosso – que pediu na sua chave o Atlético de Carazinho, distante apenas quarenta quilômetros de Passo Fundo, no lugar que era do Riograndense de Santa Maria, situada a quase trezentos. A troca foi pedida não só pela diferença de nível técnico entre as equipes, mas para evitar os gastos de uma viagem longa, que em 2010 custou ao Gaúcho cerca de quatro mil reais.
Quando o inverno apertar no sul, é possível que o Gaúcho nem esteja mais vivo na Segundona. A lógica, a folha de pagamentos de doze mil reais e a inexistente estrutura do clube indicam que o limite pode ser a primeira fase. Com teto salarial em seiscentos reais, o clube explicita que não tem pretensão – e hoje não faz questão – de subir. Seguir na segunda divisão já valeria o ano. A questão é manter o Gaúcho vivo: “torcida você não faz da noite para o dia. Torcida se cria com os anos. Com o pai, com o avô, com o bisavô. Com filhos. E não com dinheiro”, crê Rosso. No portão do Wolmar Salton, os novos donos pintaram um agressivo “PROPRIEDADE PARTICULAR, NÃO ENTRE”, que deve massacrar o coração dos mais antigos. Ao lado, nas paredes externas, um torcedor respondeu, gritando com tinta: “O GAÚCHO JAMAIS MORRE”.
Iuri Müller e Maurício Brum

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